Treçolhos

Quando alguém sai do seu país, poucas vezes o faz de animo leve. Diria até que nunca o faz de animo leve. Guerra, perseguição política, crises; económicas ou familiares, amores apaixonados.

Sair de casa implica demasiadas vezes que a casa nunca se volte. Casas não se constroem assim do dia para a noite, amigos não oferecem seus ombros do dia para a noite, e quando saímos do que conhecemos, há mais noites que dias.

Acontece-me por isso de voltar e não saber que sentir.

Há coisas que não mudam em 10 nem em 11 anos. Há coisas que deveriam mudar.

Um amigo que te acolhe como se nunca tivesse deixado de te ver diariamente. Um irmão que cresceu como trepadeira ao sol no lugar que deixaste vazio.

Há os que se regozijam com o regresso, e os que te perseguem: “não tens o direito de voltar” parece ser o texto de cada acto.

É possível saber que dizer?

O direito a existir não se aliena num avião.

O direito a uma história, a uma família não se evapora por não partir o pão de domingo de manhã.

 

Madrid

Do calor que sobe pelo chão adocicado, eu guardava a memória. Lembro-me de o odiar um pouco, de desejar apenas uma coca-cola, de pensar, que sandálias rimam com o deserto?

Hoje o calor que sobe, enreda-se devagar, degustando a pele que, menos seca, se lembra dele, e se lhe oferece, refeita. Ele pára no joelho, não se atreve ir mais além.

Podia.

Aqui a saia é curta, o calção apertado, os olhares não se impõe, discretos, silenciosos. Estarão? Talvez sim, talvez não. A perna é do cimento que queima. Só isso importa.

Hemingway não tomou café aqui. Nem ali. Quem tomou era eu.

Não fui, é licença poética, não é gramática. Era eu.

Madre mia, como ha cambiado tu letra!

Pois sim senhora. Essa que era eu, era inocente, e redonda na escrita. Hoje sou redonda na forma e linear no escrever. O traço oferece-se ao destino rápido, não está para conversas. Tome lá, dê cá.

O Juan Carlos assinou também. Depois assassinou um animal selvagem e a monarquia.

Um mestrado em filosofia deve ter provas de crime.

Crimes.

Vários.

Agora assinados.

Por isso senhora, quer que desenhe tudo redondinho, quando as coisas são pontiagudas?

Nem importa, o calor sobe pela cadeira acima. É melhor afoga-lo em cerveja. Da mais simples, muita espuma, bem amarela. Saudades das simplicidades. Azeitonas. Saudades do envinagrado.

Em sua incoerência, este amor é de verdade.

Fomos

A sequência é sempre lenta.

Até que chega.

Quando chega é rápida.

Atordoa.

O tempo é uma anedota bem contada.

como foi

Foi mais ao menos assim: um papagaio e um livro.

Repetia sempre a mesma história.

O menino gostava.

Papagaio voava no suspense.

O menino gostava.

Eram três da tarde e quando foi dormir disse:

Boa noite.

Brincar com papagaio que lê cansa.

1 de Julho

(Novamente exercício para o curso de escrita criativa, casa do saber, professora Noemi Jaffe)

Os acontecimentos do dia 1 de Julho tem sido alvo de inúmeras  investigações, especulações e poderemos até dizer que algumas tentativas de elevá-lo à categoria de mito-milagre.

2016 vinha-se caracterizando por ser um ano bipolar, os chineses reivindicavam-no como seu, o ano do macaco, um ano macaco. Grã-Bretenha num lapsos de imprevisibilidade saíra da Comunidade Europeia, Trump num lapsos de imprevisibilidade aparecia como presidente provável, a Síria esvaziava-se em mortes mediterrâneas num lapsos de humanidade. O real subia e descia numa escenificação folclórica; economistas, políticos, padeiros, esperavam o pior.

O pior vinha-se tecendo com cara de catástrofe mundial, não havia saldos de sapatos que fizessem as mulheres esquecer o medo, nem copa europeia que não pudesse ser confundida, por um menino que começa a falar, com uma cobra europeia.

Os eventos desse dia, improcedentes, começaram a ser descritos por um professor de condução.

Marcelino Maiztegui da Silva, responsável pela conta de Twitter @marcelinomaisteguio, twitteou a primeiras horas da manhã, o que alguns tomaram pelo humor brasileiro em dia de sexta feira: #zebraaprendiz #cartaverdeporriscas #azebraparanaspassadeiras. Esse twitt viralizou rápidamente, outros tantos se seguiram, dignos de exemplificar como funciona um campo lexical, riscas para Moro, Cunha, Temer, Dilma, Lula. Carta verde, fora tomado como ordem de prisão,  uns e outros tiveram seus minutos de celebração.

Às 10.45, a delegacia da Av. Estados Unidos, em Cerqueira César, São Paulo, recebe uma chamada invulgar, um tal Carlos Freire, motorista de taxi licenciado, avistara uma zebra ao volante de um Hyundai i30. Do assombro, o indivíduo apenas reteve que a Zebra era do tipo comum “Como se vê no zoológico”, e o hyundai preto teria a matricula com o ultimo número 1.

Capitão Coelho descartou a investigação até que às 12.30 um executivo da Uber, cujo nome permanece por identificar, se apresentou numa delegacia em Brasília declarando um erro no sistema. O erro era listrado.

Como em todos os momentos históricos, segundos antes, a vida decorria na mais aparente normalidade: uma criança subia a rua chupando um pirulito, uma velha procurava os dentes na sacolinha do supermercado, trinta alunos saíam do colégio italiano Dante e aguardavam que o seu vigilante subisse o circulo verde, liberando-os finalmente para o primeiro dia de férias.

O jornal Folha conseguiria esse mesmo dia, uma entrevista com a vizinha de uma das implicadas no acontecimento. Luísa Ivone, mulher de 26 anos, saíra de casa “arrumada e maquiada, como poucas vezes a vi. Levava uma camiseta muito bonita com uns desenhos de andorinhas e um laço preto de lantejoulas.” – adiantava a vizinha, Filomena Haddad, que resumia a estupefação geral afirmando “Parecia um dia tão como qualquer outro!”

Investigadores mais tarde ligam esta saída de Luísa Ivone a um encontro com um amigo de uma amiga. Um encontro às cegas, ainda que não podemos precisar a veracidade de tais suposições.

O encontro decorreria no Café Rincón, rua do Espirito Santo, uma travessa pouco conhecida da Av.Paulista, situado numa esquina, o café, azul cueca, oferecia um cardápio de inspiração hispana, teria sido esse o motivo da escolha.

É lá que Luís Ivone encontra Luciano Anderson, executivo na ordem dos 32 anos (há quem diga que cumpriria 33 esse mesmo mês, outros que acabara de apagar as velas pela trigésima segunda vez).

A conversa é descrita como “animada”, pela atendente, “Estudei um pouco de linguagem corporal, e ali havia química, era cabelo para trás, perna cruzada com pé apontando o outro…ele por momentos ficava nervoso, gaguejava e enrubescia” conta a curiosa Ana Brites. Aparentemente a estudante de filosofia, empregada em part-time, escutara o momento chave que reportou mais tarde ao Estadão “ Ele fez uma piadinha sobre ter nascido num Macdonalds…ela riu e não viu, não reparou, do nada, estava ali uma taturana gatinho, bem na fatia do bolo dela!!”

Luísa Ivone teria ingerido a dita lagarta, sendo acometida de imediato de fortes dores no interior da boca e esófago.

Luciano Anderson chamou o uber e quem acorreu ao local foi dona Mariusa Fragola em seu primeiro dia de trabalho.

A rota para o Hospital nove de julho viu-se complicada por uma manifestação de ciclistas que reivindicavam a primeira orquesta em duas rodas, o desvio fez-se pela alameda casa branca, apenas para se encontrar mais congestionada pelo horário de saída do colégio.

Luísa Ivone, segundo Mariusa, respirava com dificuldade, apoiada no peito “daquele moço, muito mais alto que ela.” Ele dizia-lhe palavras tranquilizantes, baixinho, e visivelmente preocupado, “algo assim como , meu amor, vai estar tudo bem.” conta a condutora.

Luísa Ivone encontrou ainda uns instantes de tranquilidade, em que se recompôs e fez o gesto de quem procura um baton dentro da bolsa, quando foi acometida por um ataque de espirros. Aparentemente era alérgica ao pelo de cavalo, portanto, de zebra.

Mariusa parou na passadeira para deixar passar trinta crianças de quatro anos. O menino do pirulito ofereceu o mesmo, esculpido como coração, ao moço que amolava as facas, Luciano Anderson fazia promessas a um deus de que não tinha o telefone, quando Luísa Ivone sentiu muita necessidade de ar e desceu da viatura ainda sacudida por violentos espirros.

Um dos alunos terá gritado “ a senhora está grávida, a senhora está muito grávida, está grávida muito muito rápido!”

A barriga dilatava a olhos vistos. Mariusa resolveu chamar uma ambulância ao local, processo que demorou bastante, devido aos seus cascos nervosos.

A ambulância, do supracitado hospital chegou em 3 minutos e encontrou o que foi descrito no relatório como uma mulher gestante de estimadamente 9 meses com vários sinais de congestionamento estomacal.

João Costa Silva, enfermeiro responsável disse que não havia tempo a perder, nem para pensar, e diante de um guarda, trinta crianças, um menino com um pirulito em forma de coração, um amolador de facas, uma zebra e um homem muito alto que parecia conhecer bem a vitima: puxou de um bisturi e abriu o abdómen ofegante de Luísa Ivone.

O deslizar produziu um corte, o corte produziu uma fenda,  e da fenda jorraram “aproximadamente uma centena de borboletas, de diferentes cores e feitios. Subiram vagarosas como bolas de sabão…” escreveria no relatório, João.

Luísa Ivone foi assim diagnosticada como o primeiro caso comprovado de borboletas na barriga. Evento que abalou a medicina tradicional, ofereceu uma merecida vitória à literatura romântica e dispôs o mundo a um optimismo sem precedentes, num ano, tão macaco.