António

O António ganhou uma continuação…lá na escrevedeira, a Noemi pediu um texto que falasse de um tempo rápido de forma lenta. Podem ler no blog

https://escrevedeirablog.wordpress.com/

Para os preguiçosos vai aqui também:

A vila inteira subiu no comboio: Lucília dos tacos barulhentos, Ana Cristina, sua peixeira-sereia, Carlitos nadador-salvador, Padre António da Cruz de Deus e de todos os santos, Marisa dos pasteis de natas…altos e baixos, miúdos e graúdos.

O comboio para Lisboa sacudia-se sobre duas linhas ferrugentas.

Deixou-se embalar, alguém lhe roubou o bilhete 2,4,6,16,31 estrela 9 e 6. A mão em sobressalto, os dedos encontrando a cartolina, um aperto enrugado entre polegar e indicador, respirou fundo.

A vila inteira desceu em Santa Apolónia.

Inteira entrou pela caixa geral de depósitos.

Parabéns senhor António, e o dinheiro? Que uso lhe vai dar?

Os moinhos da vila, pô-los de pé. Um gato ou dois para a Odete…dos siameses, de verdade… E uma viagem, dessas que se vai de avião.

Mão apertada com força, ligeiro suor, alguma dor nos pulsos, talvez o peso da mala?

A vila inteira distribuiu-se em seis taxis, cinco taxistas de bigode, o sexto tinha cabelo.

Cheirava a sardinha, a manjericão e a calor.

Inteira a vila desaguou no aeroporto.

O chão de mármore amarelo, sarapintado de escuridão, alternava brilho com opacidade. Neons ofereciam seus ombros a nervosos sinais luminosos.

O balcão da Tap era de impecável pedra branca, uma bandeira nacional deixava-se adivinhar na película grudada ao vidro.

Olhos verdes fixaram-se nos seus.

A vila inteira a dois passos, como estátuas de gelo.

O verde aparecia como um rio, escondido em marés de castanho. No meio algo estava e não se sabia, como uma tempestade ao longe.

Para onde, senhor António?

Para onde?!

O lábio da menina em movimento, uma sarda espreitava debaixo da base, muita clara para a sua pele, o nariz arrebitado impunha força num rosto dócil. Ombros largos impecavelmente cobertos pela espuma do traje azul. Uma camisa branca. Teria, com certeza, quem lhe passasse a ferro. Odete passara a ferro as suas melhores camisas, também os boxers, o pijama, as meias. Enrolara-as que nem perita, no xadrez vermelho e verde, a mala de lona do pai.

A mala pesava-lhe, o pulso cansado, o olhar da vila fervia em suas costas. Queimava como sal.

O tronco recostado no balcão, arrefecia. Sentia o frio a envolve-lo, a apertar, a arder.

Do chão subia, riscando a sua pele como um fósforo.

O mármore é tão frio como uma campa, pensou. Pode-se descansar com frio?

O silêncio da vila ensurdecia-o, gritava-se tudo naquele não dizer nada.

Não sei menina, quero viajar. Podia dizer isso? Pensaria que está louco, que é um excêntrico.

Uma mosca zumbiu na sua orelha, passeou no seu nariz, despenteou um fio branco de cabelo.

A boca da menina contraiu-se em desagrado, para onde, lia em surdina. Era bonita? A impaciência afeia, pensou, ele próprio,impaciente.

O frio do mármore, uma formiga, subindo pela barriga, pela perna, pelo silêncio inteiro da vila.

Diga algo, o que seja.

Para o Brasil filhinha, para o Brasil!

E como o Rio lhe parecesse caro, pediu um bilhete para São Paulo.

 

De costas para o mar

Pai de peixe sabe nadar…hoje li este texto lindo que o meu pai escreveu, pedi para o colocar aqui, onde sendo lido, exista mais além do olhar.

“Numa qualquer mesa de uma qualquer esplanada de uma qualquer cidade á beira-mar num qualquer destes dias.Um copo com um sumo de laranjas algarvias.Para não beber.Apenas para o olhar se perder.

E há um pedaço de sangue transparente ,como um gel de firmeza para o peito,que se desloca virtual na frente das pessoas,invisível e suspeito.

È onde me sento de costas para o mar.È onde lhe sinto o cheiro,o perfume ,o chamar,como um rio prestes a desaguar.

As mãos são de areia,como os passos,como as vozes que passam de lado ao lado de um copo de laranjas algarvias,cujo sumo, invisível e transparente como o olhar que se perde a caminho do mar,persiste ,resiste e aquece, tanto quanto o olhar que se perde transparente arrefece.

E as palavras  invisíveis,duras e transparentes por dizer,ao passar,fazem doer as pedras do chão como se tivessem sido ditas pela mão e não pelo mar.Como um frio gel de firmeza para o não.Não a caminho do rio a caminho do mar.Por sobre as pedras do chão a caminho do mar.

È onde me sento de costas para o cheiro,de frente para um copo de sumo de laranjas algarvias.Para não beber.Para não esquecer,para não deixar o olhar se não perder.

Numa qualquer esplanada…..um qualquer pedaço de sangue transparente deixando de ser pessoa,invisível e suspeito..perdendo-se pelo caminho do olhar..porque só de olhar fora feito.”

Manuel Faria Pais

António III

Não dormir pode ser uma coisa energizante. Um sem sentido desses, era logo captado por António. Se havia dias que se levantava ao meio dia, recuperando na manhã o descanso que a noite lhe negara, havia outros em que o sono recusava se desenvolver. Levantava-se António. Tomava o seu banho de sabão azul, passava pelo gato magicando como o envenenar,saía porta fora decidido a dar-se um gosto.

O gosto era quase sempre o mesmo, pastel de nata recém saído do forno, acompanhado do galão em copo, a colher alta, o grão de açúcar saltando sobre a mesa.

Observava as meninas às aranhas com seus pedidos, a dona Lucília pondo caras de fim de mundo, o filho bobo gritando que ninguém esvaziara a máquina de lavar pequenina onde só entravam chávenas de café desbotadas.

Comia devagar lendo o correio da manhã, garantindo material para não dormir nem a sesta, saía e dava uma longa caminhada pela marginal, vigilante e pensativo. Como o nadador que fora, o poeta que imaginava ainda ir a tempo de ser.

Parou aquela manhã diante a papelaria/banca de jornais/livraria/casa de jogos que o seu primo abrira.

Decidiu esperar que abrissem. Vira um talão de lotaria com um número bonito:

o dia em que tinha dormido pela última vez, oito horas seguidas. 12/03/89.

Descansou as pernas gastas na esplanada da geladaria, ainda por abrir, olhou o mar calmo com seus olhos de faísca.

10.30 chegou Maria. Levantou-se de um salto. Ninguém poderia comprar aquele número antes dele!

Dê-me o número da lotaria Maria.

Os olhos jovens e sem brilho revirando.

A mão gasta pagando, os olhos jovens faiscando.

Já que estava cometendo loucuras, indignando a jovem imberbe que o imaginava já senil, pediu também um maço de camel e um isqueiro cor de rosa.

António II

Não se podia então dizer que fosse coisa de preocupação. Não era a renda de casa, nem era um filho que dá medo o caminho que está a tomar, não era uma doença da mãe ou da irmã com quem vivia.Quer dizer. Não era só isso. Era isso e onde já se viu aquela vaca da Ana trazer botas de tacão de madeira.

Rápidamente entendera que o médico não  tinha muita resposta para lhe dar. Alguns comprimidos que ajudavam um pouco mas que depois era um vira o disco e toca o mesmo…na sua cabeça, todas as noites.

As saudades que eu já tinha da minha alegre casinha…

Vivera naquela casa sempre, não tinha saudades, estava ali. O absurdo desesperava-o.

Jura, que não vais ter uma aventura, daquelas, que acontecem, numa altura…

Ele era na maior parte das vezes, A, aventura. Não casara, não oficializara nunca uma relação. Diriam que era gay? Aliás, diriam que era paneleiro? Porque António usava era campos lexicais mais próximos de sua cozinha, nada de estrangeirismos.

Ora aí tínhamos outra preocupação. A sua reputação, de nadador salvador, bronzeado, másculo. Sempre vivera com a irmã. Que também não casara. Sempre com aquela amiga, a Emília de cá para lá, e depois a Emília fora para Lisboa e casara e a irmã ficara ali, fazendo crochet como se tivesse tecido trinta anos por cada kilometro que as separara. Será que a irmã era gay? Ai, fufa. Será que ela era fufa? Lá se lhe fora o sono.

I kissed a girl and i liked…

Esta sim, vinha ao caso…surpreendia-se com seu inglês. Levantava-se da cama imaginando que então poderia por um b&b, conversar com os viajantes, trocar experiências, uma coisa tipo sarau, tertúlias como as de Coimbra…

Mas depois…aquilo tirava-lhe o sono…onde compraria os móveis, a que horas chegariam os turistas, atirei o pau ao gatototomasogatototo…. e desistia pensando que se tivesse mais calma, até voltaria a dormir.

senhor António

Acordava sempre cedo. Lembrança do tempo em que fora nadado salvador? Quem sabe. Desse jovem bronzeado, de semblante quadrado e olhos faiscantes sobrara, com generosidade nossa, o faiscantes.

Talvez seja uma dessas palavras que soe românticas sem sentido, mas no caso, aplica-se de forma demasiado fotográfica.

Era faiscante.

Acordava cedo movido pela ausência de imagens que descarregando como um computador em atualização nos embala a todos ao sono. António tinha falta de imagens.

Compensava-lhe um sem fim de sons.

Ouvia tudo e mais umas botas. De novo, literalmente.

Ouvia os pássaros, os galos, as ondas do mar, o ruído do cão da vizinha, o gato de sua irmã que deslizava entre portas. Imaginava-o fazendo isso para o irritar, pata seguida de pata, cauda erguida como vulgar carrinho de choque, o pelo raspando na madeira carunchada, sorria o gato, por despeito ao velho. Sabia-o.

As botas acabavam de o arrancar da cama. Era Ana a da padaria que passava frenética, todos os dias, 5h e 40. These boots are made for walking, imaginava que ela cantava de caminho à farinha. Grande vaca.

Levantava-se em ponto de caramelo.

Poderia sair para correr, mas tinha oitenta anos.

Poderia sair para nadar, o que pensariam de um velho nadador salvador que dava três braçadas e puxava do ventilan?

Preferia manter intacta a imagem do grande nadador salvador.

Assim se via. Era o que ele tinha sido.

Pouco importava que trabalhara sempre naquela baía, onde crianças de um ano vão a banhos sem a ajuda de seus paizinhos, onde a água que faz litoral é mais quente que a de dois metros depois…urina dizem os da praia vizinha, sacudida por ondas, celebrada por surfistas e tão selvagem que  a vendem em garrafinhas do luso.

Tudo isso, não via.Era coisa de falta de imagens, já vos digo.

Se faltava o ver, ainda que de olhar faiscante, sobravam as memórias auditivas: a senhora Cecília com seus bolos buzinando, a criançada de então brincando e a criançada de agora que mais peppa pig menos peppa pig ainda brincava qualquer coisinha.

Frases sem sentido que lhe ecoavam pela cabeça.

Músicas das que não compreendia a letra.

O raspar do gato.

António perguntava-se como chegara aos oitenta. Claramente não dormir não é o melhor para a saúde. Energia não tinha, gastava-a calculando como dormir.

Trabalho assim a bem dizer, nunca fora grande coisa. Sem energia, cansado e rezingão acabara ganhando seus inimigos lá no mercado. Deixara de ser jovem e bronzeado. Já nem a peixeira atrevida o deixava cheirar os chocos…

Fora ao médico claro. Não durmo grande coisa doutor. Uma hora e acordo e depois duas, três no máximo. Há alguma coisa que o preocupe? Nem por isso. Era coisa de muitas coisas, não uma que o preocupasse, eram várias que sem solução o irritavam. Era isso, um chateamento. Uma indignação. E músicas e barulhos. Que poderia dizer ao médico? Que o irritava o primeiro ministro, o presidente, que o tiravam do sério os nazis e os jihadistas, que a moça do café que tirava os bolos e deles se cobrava com a mesma mão, que os sinais de uso exclusivo para clientes, que o iva dos livros, que tudo isso…o tirava do sério?

Preocupar?

Karl Ove

Sempre pensei que as epifanias chegam com o movimento. Descobri que a psicanálise explica porquê, deixa ser ideia genial, passa a ser um facto. Agora que a literatura se ocupe de como a vida muda enquanto mexemos o café com o açúcar é coisa que Knausgård aprimora com línguas de gato.

Por isso, recomendo.

Sardinha

Quem não o conhece por inteiro, não sabe que o sal tem cheiro.

A maresia, esperou a Sophia à beira mar, e as areias douradas, polvilhadas de prata, deixam as marcas da espera.

Quem o conhece sabe que tem ritmos de sabão.

Tem pele de pimento na brasa.

Tem imperial com tremoço. Bola de berlim com ucal de chocolate.

Por mais que o futuro avance, tem quadrados de melão num tupper gasto.

O calor que faz é namoradeiro, chega-se devagar ao vento, enrosca-se e estica-se para tocar umas gotinhas de chuva, molha tontos, molha lusitanos.

Há que se ser da terra para dispensar o sweater e os óculos de sol, praticar a arte de se esconder do tempo que se desfaz, atrás de uma sombra de guarda-sol.

Da delta, da pepsi, da buondi, da segaffredo.

Ou é de oferta ou é de arco-iris, desbotado de sol, de areia, de ser atirado para um porta-malas sobrecarregado, gasto dos dedos que o apertam, o acariciam o torcem.

A areia é dura e o vento é forte.

Tudo isso é verão.

O peixe fresco na brasa, a azeitona com alho, o cheiro a pantene das nove da noite.

Quem não o conhece por inteiro não sabe, mas o sal tem cheiro.

A areia molhada faz castelos melhores, e há lugares em que se deve usar sapatos de plástico, os peixe aranha doem como cabelos puxados pelos irmãos ,pelos primos, que falam francês e português e inglês à beira mar, que se entendem e desentendem como se falassem dentro das paredes caiadas de onde todos saíram.

Há ainda a bolacha americana,  venda de fruta na praia. Nunca ninguém viu alguém que comesse.

Comer é importante.

Dormir ao sol um luxo.

O verão  em Portugal tem tudo isto.

Tem também o céu quente de estufa, escuro de fumo, neve de fuligem.

Não tem cheiro de sal este fogo.

Tem cheiro de fim.