Acordava sempre cedo. Lembrança do tempo em que fora nadado salvador? Quem sabe. Desse jovem bronzeado, de semblante quadrado e olhos faiscantes sobrara, com generosidade nossa, o faiscantes.
Talvez seja uma dessas palavras que soe românticas sem sentido, mas no caso, aplica-se de forma demasiado fotográfica.
Era faiscante.
Acordava cedo movido pela ausência de imagens que descarregando como um computador em atualização nos embala a todos ao sono. António tinha falta de imagens.
Compensava-lhe um sem fim de sons.
Ouvia tudo e mais umas botas. De novo, literalmente.
Ouvia os pássaros, os galos, as ondas do mar, o ruído do cão da vizinha, o gato de sua irmã que deslizava entre portas. Imaginava-o fazendo isso para o irritar, pata seguida de pata, cauda erguida como vulgar carrinho de choque, o pelo raspando na madeira carunchada, sorria o gato, por despeito ao velho. Sabia-o.
As botas acabavam de o arrancar da cama. Era Ana a da padaria que passava frenética, todos os dias, 5h e 40. These boots are made for walking, imaginava que ela cantava de caminho à farinha. Grande vaca.
Levantava-se em ponto de caramelo.
Poderia sair para correr, mas tinha oitenta anos.
Poderia sair para nadar, o que pensariam de um velho nadador salvador que dava três braçadas e puxava do ventilan?
Preferia manter intacta a imagem do grande nadador salvador.
Assim se via. Era o que ele tinha sido.
Pouco importava que trabalhara sempre naquela baía, onde crianças de um ano vão a banhos sem a ajuda de seus paizinhos, onde a água que faz litoral é mais quente que a de dois metros depois…urina dizem os da praia vizinha, sacudida por ondas, celebrada por surfistas e tão selvagem que a vendem em garrafinhas do luso.
Tudo isso, não via.Era coisa de falta de imagens, já vos digo.
Se faltava o ver, ainda que de olhar faiscante, sobravam as memórias auditivas: a senhora Cecília com seus bolos buzinando, a criançada de então brincando e a criançada de agora que mais peppa pig menos peppa pig ainda brincava qualquer coisinha.
Frases sem sentido que lhe ecoavam pela cabeça.
Músicas das que não compreendia a letra.
O raspar do gato.
António perguntava-se como chegara aos oitenta. Claramente não dormir não é o melhor para a saúde. Energia não tinha, gastava-a calculando como dormir.
Trabalho assim a bem dizer, nunca fora grande coisa. Sem energia, cansado e rezingão acabara ganhando seus inimigos lá no mercado. Deixara de ser jovem e bronzeado. Já nem a peixeira atrevida o deixava cheirar os chocos…
Fora ao médico claro. Não durmo grande coisa doutor. Uma hora e acordo e depois duas, três no máximo. Há alguma coisa que o preocupe? Nem por isso. Era coisa de muitas coisas, não uma que o preocupasse, eram várias que sem solução o irritavam. Era isso, um chateamento. Uma indignação. E músicas e barulhos. Que poderia dizer ao médico? Que o irritava o primeiro ministro, o presidente, que o tiravam do sério os nazis e os jihadistas, que a moça do café que tirava os bolos e deles se cobrava com a mesma mão, que os sinais de uso exclusivo para clientes, que o iva dos livros, que tudo isso…o tirava do sério?
Preocupar?