Não dormir pode ser uma coisa energizante. Um sem sentido desses, era logo captado por António. Se havia dias que se levantava ao meio dia, recuperando na manhã o descanso que a noite lhe negara, havia outros em que o sono recusava se desenvolver. Levantava-se António. Tomava o seu banho de sabão azul, passava pelo gato magicando como o envenenar,saía porta fora decidido a dar-se um gosto.
O gosto era quase sempre o mesmo, pastel de nata recém saído do forno, acompanhado do galão em copo, a colher alta, o grão de açúcar saltando sobre a mesa.
Observava as meninas às aranhas com seus pedidos, a dona Lucília pondo caras de fim de mundo, o filho bobo gritando que ninguém esvaziara a máquina de lavar pequenina onde só entravam chávenas de café desbotadas.
Comia devagar lendo o correio da manhã, garantindo material para não dormir nem a sesta, saía e dava uma longa caminhada pela marginal, vigilante e pensativo. Como o nadador que fora, o poeta que imaginava ainda ir a tempo de ser.
Parou aquela manhã diante a papelaria/banca de jornais/livraria/casa de jogos que o seu primo abrira.
Decidiu esperar que abrissem. Vira um talão de lotaria com um número bonito:
o dia em que tinha dormido pela última vez, oito horas seguidas. 12/03/89.
Descansou as pernas gastas na esplanada da geladaria, ainda por abrir, olhou o mar calmo com seus olhos de faísca.
10.30 chegou Maria. Levantou-se de um salto. Ninguém poderia comprar aquele número antes dele!
Dê-me o número da lotaria Maria.
Os olhos jovens e sem brilho revirando.
A mão gasta pagando, os olhos jovens faiscando.
Já que estava cometendo loucuras, indignando a jovem imberbe que o imaginava já senil, pediu também um maço de camel e um isqueiro cor de rosa.