Ana Maria

O café puro, forte, chamava-a para a cozinha. Tinha gosto de trégua, de carinho. A avó acostumara-a assim e a mãe não suportava nenhum hábito desses dias, excepto esse. No café escuro, passado só para ela, a avó voltava de Pernambuco para a abraçar, a afagar e lhe recordar os joelhos esfolados, os fios de manga entre os dentes entrançando os dias.

E a mãe deixava, perdoava-a por essas saudades dessa avó de nariz abatado e olho puxado, sumido na bochecha gorda e escura.

Para a mãe aqueles haviam sido os piores anos. Deixar Ana Maria e Mariana aos cuidados da sua mãe para vir para São Paulo, limpar privada pública e vidros que faziam coceira às nuvens. O pai deixara-as por uma loira verdadeira. Coisa que doía demais à mãe, pelo incómodo de ser ver sozinha, pela bofetada em sua vaidade de loira de mentirinha. A loira de verdade talvez nem nunca soube que seus fios doirados enforcaram a felicidade de três mulheres, que sua pele branca se fez noites em branco para três mulheres. Quatro até, que a avó tudo vira e de tudo se doera.

um cheirinho

de outro texto

 

Dois irmãos: um crocodilo, um homem. Um nasceu na Escócia, outro na Bretanha. O mar de um é diferente do mar do outro. Num a água gela, noutro escalda de frio.

Warwick e o Homem-sem-nome são filhos do mesmo pai. Esse pai era uma gaivota. Voou demasiado rápido para demasiado longe, deixou suas mães com ovos por chocar. Uma pariu com dor e a outra sangrou-se sem se dar conta.

Encontraram-se uma só vez Warwick e o Homem-sem-nome. No funeral do pai.

Uma gaivota morta, pensou o Homem-sem-nome, enquanto chegava até as suas narinas um gás fétido e adocicado, quase fresco por momentos, quase doce por outros. O cheiro do mar negro, pensou. Uma gaivota morta, uma alga como mortalha. O cheiro tão forte que invadia todos os sentidos, parecia ser visível, ser palpável, ter gosto de horror, ser veludo de tristeza, ensurdecer em silêncio. Era a morte sem doença. O seu pai morrera de uma morte diferente da sua, isso era o que ela diria…

O Homem-sem-nome chegara cedo porque nunca se atrasava. Warwick chegou tarde porque nunca se apressava. O Homem-sem-nome chegou sem mais, Warwick chegou demais.

Cosmo III

Carly, Carolyni, Carlão e ele Cosmo.

Carlão era carta fora do baralho. Carly passava verniz em mãos calejadas, lá mesmo, na comunidade. Carolyni estudava. Tinha ideias requintadas e palavras bonitas, queria ensinar crianças.

Viu claro o caminho da estrada. Foi num banco, pediu um empréstimo e ali mesmo, olhando a mocinha bonita do balcão, perguntou se não fazia falta um faz tudo, um manda a todo o lado? Motoboy sim, veloz, mas com experiência, que não desse o prejuízo de morrer. Que se morresse, se comprometia a pelo menos não sujar as cartas dos clientes vip com o incómodo das entranhas.

A menina bonita olhou-o. Deu sorte, cara. De sorte ele não sabia. Imaginou o corte de seus cachinhos.

Essa noite voltou voando, um deus negro metalizado e uma outra paixão.

Cosmo II

Quem ele era, esse desenho do acaso, crescia. A gota acariciada, contava-lhe quanto tempo faltava para ser dia, noite, primavera ou inverno. Via sobre esse azul e esse vermelho a unha crescer e desaparecer, os meses que tentou não a roer, nem a mordiscar. Viu o fracasso na ponta do dedo, coberto por cola que ficara em suas mãos depois de ajudar o tio na carpintaria. Via os sonhos aparecer e desaparecer, rompendo a tinta, estalando a pintura, oxidando o vermelho, enferrujando os dias. Viu na gota empurrada, o pai, à sua frente, com o capacete recém comprado. Primeiro para ele mesmo, depois para Cosmo, o filho que lhe segurava o estômago arrepiado enquanto cruzava a cidade para enfrentar a vida.

Detrás do plástico escuro, conhecia-lhe os pensamentos. Dias em que estava mais cansado, a cabeça pesava-lhe, a nuca pedia a liberdade que ele desconhecia. Dias melhores, o plástico negro mostrava pescoço. Dinheiro que entrava mostrava o ombro, dinheiro que saia a omoplata.

Assim foi até que o pai se foi. Reviu no caixão a cara esquecida.

A mota foi desmontada pouco depois. Café da manhã de carburador, almoço de motor, janta de tubo de escape. A mãe chorando de pés gastos em terra húmida. A mãe embalando-se em mãos fechadas, peladas de tanto cortar chuchu. O que ela chorava ele nunca soube. Os gemidos envergonhados uma vez por semana? O abraço na cintura quando a feijoada ficava gostosa? O beijo na ponta do nariz, quando chegava com um novo filho? Ou a vida que se lhe previa mais escura que céu de tempestade? Perdido o deus avermelhado. Perdido o marido. Perdido o rato e a feijoada.

Cosmo

Transparente, imperfeita, azul e ao final o vermelho polido. Deslizava sobra a superfície perfeita, uma pincelada só feita por algum anjo, só podia ser coisa de anjo, máquina não entendia de perfeição. Via a unha ratada, comida por desigual, os limites redesenhados na ponta do dedo.Tocava a gota e ela escorregava, apanhava outras gotas distraídas e descia enlouquecida até ao chão. Podia quase escuta-la gritando de alegria. Nos desenhos que era ele, isso fora o que lhe disseram na escola, ficava um resto da gota, guardava da tinta vermelha a frescura. Nada lhe dava mais alegria.

O pai aparecia por trás, esperava que ele terminasse, silencioso encontrava as mãos como pás em suas axilas, seguia-se um grunhido que nunca soube se era verdade ou mentira, seria ele tão pesado ou o pai tão frágil?

As orelhas despidas, dos dois, o mesmo recorte, a mesma luta contra o vento. O cabelo que partia suave e regressava crespo. A mãe segurava os seus cachos depois da volta, os dedos enrugados chorando de dor. Não podia gastar tanto em acondicionador. Carrasca do próprio desejo ela vinha,  deixava cair o cachinho na terra batida, húmida de suas penas.

Para ele era um preço mais que justo. Um cavalo vermelho, uma lata invencível, rompia o som, desnudava as araras atrevidas, captava os olhares ao chegar à escola. A esse deus avermelhado que lhe oferecera o olhar das meninas, os convites para a bola dos meninos e até o apreço de um ou outro professor acostumado a misérias maiores. Ofereceria sim os seus cachinhos, o couro cabeludo e se fizesse falta até a pele que manchada dizia demasiado sobre quem era.

Recomendações

Porque a ler, também se escreve…img_6404

Flávio fez o que todo o mundo sonha, deitou pela janela fora o mundo corporativo e abriu a janela à infância. E o fez com absoluta razão de ser. Um livro que te leva, que te agarra, e onde os erros que eu tanto procuro (preguiça, previsibilidade) simplesmente não aparecem…

Da Cosacnaify.

 

souffle de peixe

Compre o leite, o pão, o quilo de tomate, o peixe e os coentros.

Perdão, compre o pão. Antes que nada, ou faça o pão, depende de você. Mas que tenha casca, duro, que o miolo seja escasso sem que o pão seja oco. Que o pão seja denso, com muita crosta, resistente, que endureça. Um pão que você, depois de hoje, não possa morder, mesmo hoje, se tem dente fraco, não se atreva. Pão à antiga, que se mastiga com os dentes todos, com a boca aberta. Pão que você tem que chupar um pouco, antes de o apresentar aos caninos, chupá-lo como criança sem dente. Compre o pão. Reserve. Deixe de parte ao ar livre. Livre mas tapado. Não pode pegar bactéria, nem fungo, nem formiga, nem ar. Não feche, não aperte, não estrangule. Deixe o pão com casca, com um pouco de ar, guardado, suspenso. Tem que amadurecer.

Esqueça o pão.

Compre o leite, três litros de leite, de preferencia meio gordo. Magro fica sem gosto, gordo faz arroz doce, ou fatias douradas, com esse pão até daria. Pense se quer fazer fatias douradas. Se não vai dar, se quer salgado e não doce, esqueça as fatias, esqueça o pão, esqueça o leite gordo. Compre o leite, guarde o leite. Atenção não abra. Sem abrir guarde na despensa, não precisa de geladeira.

Compre o tomate. Tomate maduro que chegue. Coloque o dedo contra a superfície do tomate, lisa, vermelha. Aperte. Aperte como um botão, chame apenas uma vez o tomate, se o tomate repetir o som, esqueça, já foi, esse tomate não serve. Toque outro tomate, liso, vermelho, pressão. Se o dedo regressa, protestando, suave mas firme, compre. Desse, compre um quilo.

Antes de começar, compre o coentro. Do dia, recolhido esse dia, comprado no dia. Só coentro, se for cheiro verde, esqueça, procure orgânico….

Actividade proposta pela Noemi Jaffe, uma receita impossível de tão detalhada…

canção

Tic tac carambola,
parafusos sendo mordidos por dentes brancos.

Tic tac carambola,
maçã que cai da bolsa da compra, rola pela rua, é esmagada por um carro.

Tic tac carambola,
o gosto da tangerina, antes de estar peluda, antes de estar azeda, quando tem gosto do verão que passa.

Tic tac carambola,
os ponteiros dos segundos todos que passam, enquanto a carambola ticmartelac a minha cabeça.

Desgostou-se

Será bafo ou será brisa? É bafo. Estamos no inverno, em teoria. Em teoria. Em teoria cada vez me significa menos. Mais vontade de dinamitar o que surge como certo. Faz tanta falta, o que é certo, o que é seguro. Faz falta o proibido. Ainda hoje se falou nisso, falou o Italo Calvino. E na voz dele, na voz que imagino sua, sobrepondo palavras e páginas, desço a via Po. Impossível esquecer Via Po. Croissant com nutella, cafe com leite, mochila redonda de casaco tatu, vozes cochichadas e gritos ao longe, é por aqui, estamos aqui, vem. Um italiano que me pára na rua: portuguesa? Por favor diz-me Tristeza. Tristeza. Uma lágrima corre-lhe descarada. Repete! Tristeza. E ele parado, olhando para mim. Rio. Não posso dizer tristeza agora. O elétrico vindo, um som que especifico permanece na memória e não vem.

Senta-se a meu lado o cheiro a mofo. Quero descer na estação da luz, você sabe como faz? Outro responde. Cores. Você não é de cá? Ninguém é de cá, menos ainda daqui. Minas, sul, queijo a 6 reais. Você? Minas, sul, minha mãe que faz. O do norte, tinha sete meses quando veio. O do sul era maior, não precisa. Fui mês passado, diz o do sul, que cheira a mofo, que sentado a meu lado apertado mostra os músculos e o cabelo ronaldinho, fui mês passado, minha avó tinha 106 anos, caiu, bateu cabeça morreu. Sessenta e seis? Não, cento e seis, tava toda boa, da cabeça e tudo. Caiu bateu cabeça foi a enterrar, meu irmão que vive lá, policia, veio embora,  desgostou-se.

Desgostou-se.

Foi embora.

Mesmo o quilo de queijo sair grátis, a mãe fazendo tudo, ele que sim é policia (sim, que é?) .

Desgostou-se.

Fecho a janela e a brisa quente, que tem nome de bafo, e fica fresco aqui.

actividade escrevedeira: algo lento feito rápido

Tem que tirar o dente do siso, tirar os quatro, é melhor, ocupam muito espaço. Dois de cada vez. Abra a boca. Abri. Porque lhe chamam dente do siso, seria melhor dente do tino, prova definitiva do juízo. A picada. Anestesia é melhor para a madurez? Mas não eram os cabelos brancos? O cabelo branco posso entender. Ou não…Dentista tem cabelo branco? Em geral tem, este não, tem ruga. Vou fazer força. Será que ele pinta o cabelo? Tem homem que faz isso, será que o Cristiano pinta o cabelo? Será que ele tem molares? Agora o outro. A picadinha. E quem tira de criança? Não faz muito sentido nada disso. Agora vou fazer força. Onde será que o dentista estudou? Aqui não há faculdade de medicina dentária. Aquela janela faz reflexo, melhor não olhar. Será que sangro? Pronto, liberada.