Onde deixaste o carro? Se tenho que perguntar, já sei a resposta. Pela janela não o vi. Mania das limpezas. Homem e carro, não dá para viver com eles, não dá para viver sem eles. Dar até dá. Belisquei o menos um, não adiante se não rodar a chave. Abre, fecha, tranca, destranca, cuidado para não esquecer de apagar a luz. Aquela comichão nas costas, sete velhas num mesmo edifício. Olho para todos os lados. Eu quero é saber quem bate com a porta do elevador. Eu quero é saber quem não tranca a garagem. Eu quero é… Melhor deixar a luz apagada mesmo. Não, lixem-se! O que dirão as velhas disto? A garagem está repleta de formigas. Sobem desde o menos dois numa progressão desconexa, enlouqueceram com os fumos, de certeza. Não dos carros, nem dos homens, o das velhas que querem é saber. Impossível não rir. Apago a luz. No escuro posso rir mais. Ai, ia caindo, caramba. Puxo da luz do celular, a sola da bota dobrou-se. Raios, é por me rir e maldizer as velhas, ou Deus castiga ou é karma. Olho à volta, a vizinha do oitavo direito bordeou o lugar. A fração profunda, o corte último, o grito imponente da placa dentária! Escavou em volta do branco, colocou enxofre. Pois. No fim das contas, carros, homem, e coro de velhas é coisa demoníaca mesmo.
Quando se é emigrante, e basta uma vez, sabemos bem que nada é eterno…as amizades, os amores, as vidas. Que o país que é nosso pode ser outro, alheio. Que o nosso lugar no mundo é giratório. Que a memória é breve. Sabemos o pouco que tudo permanece. Isso faz uma ferida, um corte, uma cicatriz. E é preciso muito para nos rasgar de novo. E sabendo isso, nada nos prepara para dias como este domingo. Momentos como deste verão. Em que ardem memórias, e ardem seguranças, arde o legado lusitano ou o que se possa chamar de orgulho em nós. O d.Dinis e a sua luta contra o pantanoso fim do mundo. A Lousã e as suas aldeias mágicas. Quiaios e toda a casa de tantas infâncias. Ardem vidas com um mês. Vidas dentro da barriga de uma mãe. Ardem caminhos sem retorno. Ardem os sonhos. Arde o belo. E deixa-nos sem poesia. E olho a mata de Leiria. E a ferida afinal, pode ser mais funda ainda.
neologismo
Você soube? O quê? Do menino do vinte e um. Qué que aconteceu? Assaltaram. Ah. Bom sisquestraram e tudo. Gente… Levaram no galpão, anteamordaçaram, sabe? Como? Taparam boca e olhos. Ah, para não saber onde estava. Isso, mas o menino lá, largou a cantar, sem palavras nem nada, só sons tapados, os bandidos se dexasperaram, e laragaram ele. Nem quiseram saber de dinheiro nem nada? É ruim, ein? É ruim. Sem dismordaçar?É, sem antesperar nada.