Susane IV

O meu nome é Robinson Crusoe e este é o Sexta-feira.- Estendeu-me a mão, vermelha, dedos grossos, rugosos.

É temente a Deus?

Só quando troveja!

Deus não me havia abandonado totalmente, o homem era inglês! Inglês de língua e de humor, e ainda que não parecesse nada, coberto de pelos e cheio de marcas na pele. Estranhas marcas, como unhadas de gato,  caminhos escavados e perfeitamente secos, a pele aí, ligeiramente mais claras. Uma escrita estranha, numa língua antiga, um aviso ou um convite, não saberia dizer. Algo me tinha sido dito que aparentava ser isso. Cicatrizes. O homem inglês estava coberto de cicatrizes. A palavra soube-me a chá.

Homem não come homem! Deus não gosta!

O tal do Sexta-feira falava. Não seria petisco. Procurei semelhantes marcas no corpo do homem azeitona. Não tinha.

Onde estão os outros?

Que outros?

Do meu barco?

Só a encontramos a si menina.

Era verdade então. A voz do capitão tomou todo o espaço dentro do espartilho.

E como se saí daqui?

Não sabemos menina…

O homem inglês colocou-me o chapéu na cabeça e ajudou-me a entrar no que parecia um jardim denso. O homem que era um dia de semana, agarrara os meus sapatos e observava-os enquanto caminhava.

Já dormia na cabana fresca quando me lembrei que nem lhes dissera, que era, Susane Wells de Kensington Road.

Susane III

Não sei quanto tempo permaneci assim. Um tempo suficiente para perceber que tudo como era antes já não seria mais. Eu já não seria mais. Incendiei-me inteira e comecei a rasgar o que encontrava, saia, saiote, decote, folho e renda. E mais ardia de não conseguir rasgar tanto quanto queria. E ardiam as mãos e os lábios e os dentes, e mais ardiam de não conseguirem rasgar tudo.

E foi aí que vi. Dois pares de olhos. E eu, Susane Wells, desgrenhada, vermelha e semi-nua. Tapei-me com o chapéu.

Quero a minha mãe! Gritei. Quero a minha mãe! -Nada de ser a Susane e tudo isso, nada de acenar e dizer algo coerente.Ficou tudo turvo e eles desapareceram por momentos. Fui recuperando o ar, e a dor do espartilho e secando os olhos na seda molhada. Os dois quietos, esperando. Um dos homens resistira bastante ao sol, tinha o cabelo liso, penteado e vestia apenas umas calças bem acima do seu número. O outro tinha a pele vermelha, como a que lera nos livros que tinham os índios e os canibais e os violadores de damas inocentes. Mas tinha também olhos azuis, com essa sobriedade inglesa e por momentos imaginei que pudesse fazer-me um chá, e senti sede, uma sede que era só sede da língua toda mergulhar no amargo de um aroma.

Susane II

Foi sem graça que me consegui pôr de pé, a minha mãe morreria de vergonha de assistir, girando na areia, defendendo braços do espartilho, abrindo as pernas de par em par, arranhando o chão e deixando escapar uma flatulência. Ah dane-se. Tem mais vergonhas a minha mãe, mais vergonhas com que se preocupar, e todas minhas, temo. Susane Wells, vinte e dois anos, Kengsinton Road. Susane Wells, vinte e dois anos, Kengsinton Road. Filha de Paul Wilson Wells e de Margaret Woolf. Irmã de John e Emily. Batizada, crismada, devota, gritei. E o espartilho quebrado rasgava-me a pele, e o suor metia-se fininho para me queimar o sangue. Ao meu lado os sapatos que tentara salvar. Sabe-se lá porquê. Uma caixa de charutos ensopada, uma colher de prata, e um chapéu negro, de feltro. O chapéu serviria, mesmo negro, algo poderia contra o sol.

Gritei de novo, nome, proveniência e fé. Se soubesse que estava sozinha tirava o vestido. Mas se estivesse, se estivesse ali sozinha, como ia tirar o vestido? Estiquei os braços, por cima por baixo. Não conseguia mais que tatear a pele coberta de areia. Excelente, estava pronta para ser um sonho frito. Enchi o peito de ar, mulher balão rompe botões, imaginei os títulos. Nem um botão. Oh Deus, era preciso tudo isto?! Pelos vistos era, e tudo porque não queria um marido velho, chato e com mau hálito. Continuei a gritar: Sou a Susane…, olhava o branco da praia, talvez algum objeto cortante…foi aí que vi. Ossos e ossos e algo que parecia um volante, e era de ossos, e era uma bacia, oh meu Deus, era uma bacia! De alguém, um homem, com nome, e morada, e pais, e paróquia e talvez desobediências tantas.

Hoje de manhã

Disacredita do que te digo, disacredita, faz troça, fala nas minhas costas, ou cospe o café de tanto rir. Aqui o ortoentediamento amanhece antes do sol. Parece que sonha com isso. Assoa-te, eu disse, assoa-te amor. E ele funga para dentro. Dá para perceber? Para fora amor, aqui no papel higiénico. Não quero, não quero, não quero. Disacredita do que te digo, nem pingava para fora. Tudo ele engolia. Só para me consumir. Fico numa consumição com aquilo que disacreditarias! Assoa-te filho, o papel já todo enrugado na mão. Assoa-te para fora menino! Já antes do sol, eu naquel consumição. Assoa-te! Ortoacredita que é preciso. Não, não, não. Pode disacreditar, foi assim mesmo.