Exercício de hoje na Escrevedeira, contar algo concreto, sem marcador espacial, nem temporal

A permanente ficou perfeita. O ondulado quase frisado e a franja esticadinha, direita. A minha mãe deixou! Ficaste linda, linda. Mexia um pauzinho de madeira num caldeirão. Uma sopa espessa. O rosa da cera era da cor das minhas calças elásticas. Vamos lá, então? Va…vai doer? A primeira vez dói mais, a gente habitua-se, o pêlo fica mais fraco. Puxou o pau e enrolou-o. Os fios da cera deixaram de cair. Encostou-o na ponta do meu lábio. A franja estava direitinha mas caiu um cabelo encaracolado nos meus olhos. Comecei a chorar. A cera estava em cima do meu lábio. Arrependi-me. Ninguém ia olhar para o meu bigode com tantos caracóis na cabeça. Estás pronta? Assenti. As lágrimas caíam rápidas. Ela puxou, de uma ponta à outra. Gritei. Como nos filmes, quando partem uma unha.

Ainda

Ainda assim o ano vinha estranho. Abriram lugares de estacionamento, escavados aos passeios. Uma ordem aparente. O carril de bicicletas cheio de pedrinhas miúdas e flores secas e peludas que davam alergias. Pelo chão ainda se podiam encontrar bolotas. Há anos que não via papoilas. Tinha a sensação que este ano haveria. E de sobra. Aqui e além campainhas amarelas, as que em pequenos mordíamos de gostos azedos e transgressão. Este ano já vendem flores, comestíveis, biológicas. Que bom, sempre são mais coloridas. Ainda assim, o ano vinha estranho. Esvaziava-se o céu de águas cheias, e os ventos que vinham eram de raivas e cansaços. Por toda a parte azulejos. Até sabão de cheiro a erva doce, canela, licor de doce de ovo. Como os gelados. Mas sabão. Enxurradas de línguas alegres subiam e desciam a rua. Loiros, morenos, empinocados ou da decathlon. O turismo nem sempre é democrático. No caso, não sabemos mais o que seja democracia. Ainda assim o ano vinha estranho. De tanto, que era o mesmo, fiquei de vontades suspensas. No meu telefone um gato preto nadava no mar. Deixei-me ficar a observar.

Distopia?

Já não era preciso morrer, e por isso havia nome para tudo. Para os gostos, para as dúvidas, para as escolhas, para as dívidas, para as ofertas, para as portas da casa de banho, para o seu peso, a sua altura.

Já não era preciso morrer, e por isso os relógios altos mediam os passos, os ritmos. Esteve aqui a tal hora, o seu número diz. Demorou tanto! Clique nas opções: Demorei porque a); b);c) Pode ajudar-nos a ser mais eficientes.

Já não era preciso morrer, e por isso ajudamos a que tenha tudo o que quer. Vemos que está interessado em mantas de lã. Aqui tem várias lojas, vários telefones, lãs diversas, modelos para tricotar, pessoas que gostam de lã; de tricot; de mantas; que tem frio; que gostam de frio, que estão sozinhas perto de si e que podem querer aquecer consigo uma hora. Aqui estão, deslize as que gosta para a direita.

Já não era preciso morrer, e por isso os mitos são sugados em seringas. Um pouco mais e estripamos a Ulisses, espere espere, aqui a saliva no cotonete, cuspa a Édipo. Tome o seu kit de descobertas messiânico. Em três dias dizemos-lhe tudo. Veja o seu bisavô não era polaco, era sueco, que surpresa hein? Sabia que tem fortes chances de ser diabético? Mas não se preocupe, aqui tem um caramelo rosa, vai ajuda-lo a apagar esse risco, e este laranja a esquecer esse medo. De qualquer forma o pior é a sua tendência ao alzeimer. Pelo sim pelo não, deixe já por escrito, como gosta da sua manta de lã, qual dos desconhecidos que passou para a direita lhe pode dar este comprimido verde no dia em que se esqueça de que havia morte, e agora, agora tudo tem nome, e já não é preciso morrer.

 

COISAS

Não tem parado de chover. É bom. Havia sede, fogo e terra.

Não tem parado de chover. É bom. Lava, limpa, molha.

Quando chove muito, parece que o sol não volta.

Não tem parado de chover. É mau. Escorregamos, encharcamos, adoecemos.

Não tem parado de chover. É mau. Deprimimos, escorregamos, afogamos.

 

Dizem que o arco-íris é isso: a promessa que em algum momento pára de chover.

Também dizem que se podem matar flores mas ninguém pára a primavera.

Ultimamente, penso nisso, enquanto chove. Parada.

 

O que é a primavera?

Há tanto tempo que não a vejo…