vermelho vivo

Ontem e hoje passei no semáforo. Indo e vindo. O cão não estava. O homem de camisa preta também não. Passou um autocarro que dizia reservado, e fazia as mesmas paragens que os outros. O meu filho explicou-me que ele e o amigo se sentam com a Laura. A Laura é muito bonita ele dizia. Somos malucos por ela. Malucos. Perguntei se ela o tratava bem. Ele disse que não. Doeu-me um pouquinho o peito.

Passei por ali porque fui buscar um exame. Havia três pessoas a atender. Três pessoas com número à minha frente. Duas atendentes foram embora. Estava a atrasar-me. Fui-me embora. No semáforo, procurei o cão. Ele não estava. Cocei o meu nariz. Acho que o meu nariz está a ficar torto. Como o do Pirandello. A crise dele é psicanalítica. Todos em algum momento descobrimos que temos o nariz torto. Este fim de semana vimos dois cãezinhos numa praça. Eram pequenos como ursos de peluche. As pulgas eram pequenas como eles, mas carraças não vi. O meu filho queria um deles. O dono queria vende-los. Olhei para o nariz do cão e estava esfolado, ou despigmentado. Pensei que isso significava que o homem me queria enganar. Tive pena. Eu também queria o cão. O meu filho queria chamar-lhe amorinho-fofinho. Eu queria chamar-lhe Jacques. Como o LA-CAN. Talvez o cão se risse destas minhas piadas. Tenho várias piadas que ninguém se ri. Como não as conto não me rio.

Fui comprar o leite, aqui estamos sempre a ficar sem leite. Acaba-se-nos o deleite rápido. Um homem não muito velho, empurrava com a pá de plástico um pão de água. Na mão um saco de papel e plástico pesava. O pão era o último que havia. Alguém que o olhava ria muito. Um riso tolo. Ou era pequena ou uma criança. O homem lutava com a paá e o pão e o pão não vinha e a pá ficava presa nas franjas. Essas franjas são para impedir que a mão encontre o que quer. Pode sujar o que não se quer. Nos anos noventa havia umas garras que com a moeda devida, se mexiam para agarrar os peluches. Agora é assim com o pão, a broa, o bolo de arroz. A pessoa pequena ria. Ria de um riso tolo e inteiro. Um riso entregado e livre. Fiquei a olhar. A pessoa pequena tinha razão para rir. Se lhe contasse a minha piada do La-Can talvez ela se risse. A caça ao pão era mais divertida. Realmente essa piada do cão não é tão boa como a vida vista com olhos abertos. Avô ela disse depois. Tinha os olhos rasgados e a boca para a frente. Uma franja certinha. O avô riu-se de volta e disse a senhora do caixa que a mulher estava com o açúcar alto. Diabetes do tipo 1. Tinha que ir ver se ela melhorara e senão chamar o Luís da farmácia para lhe dar a injeção. Ele sorria e dizia, sabe, diabetes, é assim. A menina agora não ria, fechava o rosto e a bochecha tremia um pouco. A da caixa, disse que não sabia isso. Eu pedi as cartas de super heróis porque gastei 10 euros. Ela deu-me duas. Eu disse é só uma. E ela disse Não!São duas. Cada uma falava de suas coisas. O avô sorria, o Luís era muito prestável, saí da farmácia e vai lá dar-lhe uma picada na barriga. Peguei nas cartas dos super heróis. Olhei para a menina. Ela continuava de rosto fechado. A barriga da avó dela deve ter nódoas negras, e pontos vermelhos. Amorinho-fofinho é melhor que Jacques.

русский!

Aconteceu no verão. Mais precisamente na noite em que o dia vinte de junho cedeu suas arestas arredondadas para o dia vinte e um. As crianças penduravam nas paredes desenhos de areias e chapéus de sol, coisa que caíra em desuso em 2018, quando tudo eram toldos e palmeiras. Perto do aeroporto Maria Conceição Silva, no quadrado torto a que se chamava Pote de água, sonhou que era russa. Que se chamava Natascha Dimitrova e que era natural de Odessa.

Sonhos!

Benzeu-se. Conchita era muito crente. A janela da cozinha estava aberta e o dia fresco. Devia decidir entre café de capsula ou de cafeteira. Para ela sozinha era melhor de cápsula.

  • Вы хотите кофе? (queres café?)- perguntou ao marido que lia A Bola na sala.
  • É o quê?
  • Вы хотите кофе?

Joaquim dos Santos levantou-se de um tiro, aquele jogador ele não conhecia.

  Saiu nos cromos do continente?

    Что ты там говоришь? Вы хотите кофе? (o que estás a dizer? queres café?)

Apontou para o café. Joaquim não queria. Voltou chateado para o sofá. Ele sabia todos os jogadores, Conchita bem que podia querer fazer pouco dele.

  • Deves tar armada em parva, deves?

As cápsulas eram de marca branca. Conchita é assim… para que entendam melhor, uma consumidora atenta. Arroz e massas compra no lidl, verduras e peixe e carne no pingo doce, as cápsulas no mini-preço. Como toda a verdadeira dona de casa, tem a paixão do económico.

  • капсулы исчезли! (acabaram as cápsulas!)

Desceu pelas escadas, devia vigiar de perto a porteira, Liudmilla. Era da Crimeia, e para alguém tão russo como ela, os da Crimeia deviam andar sempre de rédea curta. Alguém tão russo? Riu-se de si mesma. Preferia as cápsulas prateadas, como deitava fora a caixa, assim que chegava a casa, nunca recordava o nome da mistura. Furou com a chave a embalagem de papelão. Vermelha. Rosa. Negra.

  • O que está para aí a fazer?- gritou a funcionária.
  • муха! (Uma mosca)
  • Enxerida era a sua tia!

Conchita só tinha a quarta classe, mas burra não era. Pegou em dois pacotes dos que restavam, com sorte seriam prateados. Caminhou até ao caixa, recordando nos pés as botas rijas e peludas com que no sonho descera uma rua cinzenta.

  • Вы не понимаете, что я вам скажу? (Você não percebe o que lhe digo?)

A caixa arregalou muito os olhos. Com os dedos magros procurou o botão amarelo. Deixou as unhas de gel quebrar enquanto rezava para o segurança chegar rápido.

 

Exercício de glosa baseado no Nariz de Gógol

pintas

Não tenho passado pelo semáforo. Não sei nada do cão, mas fico a pensar. Quando eu penso, faço perguntas. No Young Pope o Jude dizia que era assim que se devia rezar. Fazendo perguntas. Vi logo que aquilo era mão do diretor ou do guionista. Artistas. Rezam a fazer perguntas.

Se as respostas não chegam? Há quem reze mais ou quem faça mais perguntas. Será que o cão, faz perguntas?

Quando ladra por exemplo, a quem caminha no seu cotovelo de passeio, quem cruza a luz no vermelho, ou espera à sombra pelo verde. Não é estranho supor que alguns, antes de cruzar a rua se benzam. Que outros repitam mantras baixinho: que as pernas sejam rápidas para chegar ao autocarro, para chegar a casa, para dar banho no filho, beijo de boa noite. Um autocarro pode passar ali a cada cinco minutos. Ou a cada vinte e cinco. O cão não tem como saber porque correm as pernas cansadas. Talvez ladre. Quando ele ladra a pessoa assusta-se, estanca, atrasa-se. O filho já está a dormir. A pessoa fica desgostosa com o cão. Olha-o com raiva e ele parece um chouriço com tinha, se é que a gordura debaixo do clorau pode fazer urticária. O cão pergunta-se: porque me odeia? Ou porque ninguém me alimenta? Ou porque insistem em caminhar no meu terreno?

Se o cão fosse, e penso agora que é estranho não me ter ocorrido esta ideia antes, se o cão fosse um humano desses, que tem os cabelos brancos amarelados pelo fumo dos motores antigos, e a pele laranja de sujidades sem nome, se o cão fosse, digamos, um presidente de um importante país a que nos habituamos a considerar evoluído. Trancaria os que correm para o autocarro em gaiolas?

E os que estão dentro de gaiolas, rezam para que o cão morra, se esqueça ou construa finalmente o muro? O cão ladra. Talvez ladre para criar uma bolha de ar, com paredes de silêncio e de ruído. Talvez o cão sonhe com convidar alguém a entrar naquele espaço, caminhar pelo cotovelo de pedras quadradas. Talvez reze que alguém lhe deixe ali o resto do almoço, enquanto corre, pesado para o autocarro. Talvez pense que se a pessoa corre assim, é porque há um pau ou um osso, uma corrida. Não deve ser por mal.

Que o cão ladra.

Não deve ser por mal.

Estranho mundo, em que se pode esperar mais de um cachorro rafeiro, que do presidente dos estados unidos.

 

vermelho II

O homem não estava. Só o cão. Havia outro homem, gasto. Podia ser o primeiro homem se tivesse viajado no tempo e mudado a camisa. Era verde seca. Militar. O cão varria a esquina. As manchas brancas pareciam peladas, ao longe. Este homem não tinha medo do cão e por isso alçava as pernas e fintava-o. A porta automática, abria devagar, incompleta. Dentro do café o chão de mármore, pintalgado. Papéis rijos cobriam o chão, aqui e ali migalhas de croquete e jornais amarrotados. Saiu no estadão que o Mandelstam casou com a Nadejda quando ela tinha nove anos. Diz também que ela estava num cabaret. A Noemi diz que não, que tinha dezanove, que é um engano horrível. O Mandelstam uma vez, a Noemi contou-me, apaixonou-se por um tapete que era muito muito caro. Eles mal tinham para comer. Mas o tapete e ele estavam apaixonados. A Nadejda não, ela estava apaixonada por ele. Eles ficaram sem comer para comprar o tapete. Enquanto esperavam o tapete podiam ter passado ali, na esquina onde está o cão. Pelas portas de vidro podiam ver os bolos de arroz, endurecidos de açúcar, a publicidade da Compal. Pensariam no seu tapete. O cão talvez lhes ladrasse, porque ali, estariam no meio do caminho entre um semáforo e outro. O cão percorre esse caminho sem parar. Depois a Mari falou nos mortos dela. E ficámos a segurar o choro e em silêncio. Pensámos nos nossos mortos, e eu pensei também no cachorro velho e lento com as pintas brancas, na Nadejda que decorou os poemas todos do marido. Trezentos poemas. Se eu escrevesse um só poema, muito muito bonito, quem o poderia decorar? Se alguém me lesse um poema muito muito importante, eu seria capaz de o memorizar? O semáforo ficou verde, e o homem atrás de mim buzina. Os homens buzinam muito mais que as mulheres, ainda assim, são elas que tem má fama. E elas decoram poemas por amor. E escrevem sobre os seus mortos. E frequentam cabarets aos nove anos. O cão senta-se. Arranco.

Como seria esse tapete?

vermelho

O homem estava de negro. Na esquina e sacudia um braço. Ou uma perna. A fazenda negra suspirava de vento. Por dentro uma linha branca, enrugada em linha recta, prendia-se ao pescoço. Não chegava a estar assustado. Nem a deixar de estar.

Sacudiu o pé. Uma ovelha castanha aproximava-se e distanciava-se. Raivosa. O castanho farfalhava de manchas. Um vitiligo de pelo. Um cão muito velho. Ia e vinha. O pé era ligeiro e curto, e o cachorro retrocedia ágil. Apenas uns centímetros. Parava depois como se lembrasse de repente, que era velho, muito velho. O pé do velho parava no ar, como se lembrasse de repente que era velho, muito velho.

O semáforo vermelho, lembrou-se de repente que havia o verde, e que era preciso avançar.

Então o velho, muito velho, entrou no café e o cão que era velho, tão velho, esperou-o à porta.