Não tenho passado pelo semáforo. Não sei nada do cão, mas fico a pensar. Quando eu penso, faço perguntas. No Young Pope o Jude dizia que era assim que se devia rezar. Fazendo perguntas. Vi logo que aquilo era mão do diretor ou do guionista. Artistas. Rezam a fazer perguntas.
Se as respostas não chegam? Há quem reze mais ou quem faça mais perguntas. Será que o cão, faz perguntas?
Quando ladra por exemplo, a quem caminha no seu cotovelo de passeio, quem cruza a luz no vermelho, ou espera à sombra pelo verde. Não é estranho supor que alguns, antes de cruzar a rua se benzam. Que outros repitam mantras baixinho: que as pernas sejam rápidas para chegar ao autocarro, para chegar a casa, para dar banho no filho, beijo de boa noite. Um autocarro pode passar ali a cada cinco minutos. Ou a cada vinte e cinco. O cão não tem como saber porque correm as pernas cansadas. Talvez ladre. Quando ele ladra a pessoa assusta-se, estanca, atrasa-se. O filho já está a dormir. A pessoa fica desgostosa com o cão. Olha-o com raiva e ele parece um chouriço com tinha, se é que a gordura debaixo do clorau pode fazer urticária. O cão pergunta-se: porque me odeia? Ou porque ninguém me alimenta? Ou porque insistem em caminhar no meu terreno?
Se o cão fosse, e penso agora que é estranho não me ter ocorrido esta ideia antes, se o cão fosse um humano desses, que tem os cabelos brancos amarelados pelo fumo dos motores antigos, e a pele laranja de sujidades sem nome, se o cão fosse, digamos, um presidente de um importante país a que nos habituamos a considerar evoluído. Trancaria os que correm para o autocarro em gaiolas?
E os que estão dentro de gaiolas, rezam para que o cão morra, se esqueça ou construa finalmente o muro? O cão ladra. Talvez ladre para criar uma bolha de ar, com paredes de silêncio e de ruído. Talvez o cão sonhe com convidar alguém a entrar naquele espaço, caminhar pelo cotovelo de pedras quadradas. Talvez reze que alguém lhe deixe ali o resto do almoço, enquanto corre, pesado para o autocarro. Talvez pense que se a pessoa corre assim, é porque há um pau ou um osso, uma corrida. Não deve ser por mal.
Que o cão ladra.
Não deve ser por mal.
Estranho mundo, em que se pode esperar mais de um cachorro rafeiro, que do presidente dos estados unidos.