Aconteceu no verão. Mais precisamente na noite em que o dia vinte de junho cedeu suas arestas arredondadas para o dia vinte e um. As crianças penduravam nas paredes desenhos de areias e chapéus de sol, coisa que caíra em desuso em 2018, quando tudo eram toldos e palmeiras. Perto do aeroporto Maria Conceição Silva, no quadrado torto a que se chamava Pote de água, sonhou que era russa. Que se chamava Natascha Dimitrova e que era natural de Odessa.
Sonhos!
Benzeu-se. Conchita era muito crente. A janela da cozinha estava aberta e o dia fresco. Devia decidir entre café de capsula ou de cafeteira. Para ela sozinha era melhor de cápsula.
- Вы хотите кофе? (queres café?)- perguntou ao marido que lia A Bola na sala.
- É o quê?
- Вы хотите кофе?
Joaquim dos Santos levantou-se de um tiro, aquele jogador ele não conhecia.
– Saiu nos cromos do continente?
– Что ты там говоришь? Вы хотите кофе? (o que estás a dizer? queres café?)
Apontou para o café. Joaquim não queria. Voltou chateado para o sofá. Ele sabia todos os jogadores, Conchita bem que podia querer fazer pouco dele.
- Deves tar armada em parva, deves?
As cápsulas eram de marca branca. Conchita é assim… para que entendam melhor, uma consumidora atenta. Arroz e massas compra no lidl, verduras e peixe e carne no pingo doce, as cápsulas no mini-preço. Como toda a verdadeira dona de casa, tem a paixão do económico.
- капсулы исчезли! (acabaram as cápsulas!)
Desceu pelas escadas, devia vigiar de perto a porteira, Liudmilla. Era da Crimeia, e para alguém tão russo como ela, os da Crimeia deviam andar sempre de rédea curta. Alguém tão russo? Riu-se de si mesma. Preferia as cápsulas prateadas, como deitava fora a caixa, assim que chegava a casa, nunca recordava o nome da mistura. Furou com a chave a embalagem de papelão. Vermelha. Rosa. Negra.
- O que está para aí a fazer?- gritou a funcionária.
- муха! (Uma mosca)
- Enxerida era a sua tia!
Conchita só tinha a quarta classe, mas burra não era. Pegou em dois pacotes dos que restavam, com sorte seriam prateados. Caminhou até ao caixa, recordando nos pés as botas rijas e peludas com que no sonho descera uma rua cinzenta.
- Вы не понимаете, что я вам скажу? (Você não percebe o que lhe digo?)
A caixa arregalou muito os olhos. Com os dedos magros procurou o botão amarelo. Deixou as unhas de gel quebrar enquanto rezava para o segurança chegar rápido.
Exercício de glosa baseado no Nariz de Gógol