Chamou o uber do Cristiano! Ah, pode ser. Eu estava aqui do lado a terminar um serviço, e já começou plimplim, que é outro serviço que aparece para mim, rápido, você viu, uma mulher chamou o meu uber, cheguei lá, ela não estava, liguei, ah é que costuma demorar tanto que chamei e fui tomar banho, já viu negócio desses? Falei, pode deixar minha senhora, tome seu banho que tou aqui lhe esperando, sempre chego rápido, sempre.
A camisola é amarela, o colarinho escangalhado no recorte, quase que lhe posso ver os dedos subindo e descendo. A pele repleta de borbulhas, como de sarampo mas sem vermelhidão, ou era varicela? Montes de pele e gordura, nas mãos, no pescoço, no rosto. Sem vermelho, cor de pele, da pele dele que é a única cor de pele que dá para ter e ninguém vende lápis de cera personalizados: a sua cor de pele. No que toquei? Abri a porta, sentei-me, toquei o botão de abrir o vidro. O que é aquilo na pele dele? Ele cospe enquanto fala, sem querer, que daqui a lisboa ele faz três horas, e que vem os carinha de lisboa de trem, já viu uma coisa dessas? Nas mãos as borbulhas são menores, mas no rosto são pequenos sinais, saem pela pele como numa despedida, esgueirando pescoços e dores. Pelo retrovisor só os óculos de sol, escuros, muito escuros. A minha perna toca o assento, a saia não cobre até aos joelhos, pelo menos não enquanto estou sentada. Na porta rebuçados mastigáveis, de lá. Do Brasil mesmo, como vos digo. Uva amarga, alperce, banana. Os ossos mastigam acidezes, uva amarga. Aquele rebuçado eu já comi, lá no Brasil, não é amargo, é ácido.
Para onde você vai? Para a estação. Vai para o Porto?- Homem porque você não foi ao dermatologista? Você dói-se de bolhas? Cospe raivas nas palavras e nas arestas redondas com que o sol cava, cava, cava.- Vou. Ah, se fosse de carro, ia já-lhe falar, vá pela nacional que todo o mundo pega autoestrada, Cristiano sabe sempre por onde ir, os caminhos que não tão cheios, por isso que lhe pergunto, pela nacional chego lá em quinze minutos. Em quinze? Com este trânsito? Pela nacional não se apanha, eu sei.
Ele sabe. Braçadas de cimento enchem-se de reflexos, batem no retrovisor, no olho do Cristiano e do olho do Cristiano escorrem para os montículos.
É isso, que vos quero dizer: Montículos. De pele. Sardas. Escamas.
Tenho pena de ter medo, ter medo de coisas que não sabemos se fazem mal é ser muito mal educado. Posso fingir que sou mais educada, que não estou a pensar que são como chagas. Os montículos. Como as lepras, as varicelas, os cuspos. Cristiano não ouve o que eu penso. Ainda assim, vou calada.
Pela nacional os caminhões não podem ir, tá proibido, caminhão não pode ir por ali não.- Camião, Cristiano, Camião. Camião não caminha, Cristiano, corre e paga portagem e os camionistas queimam os braços, e os olhos, e as testas de kilómetros e silêncios- Boa viagem dona, se der para colocar cinco estrelas dona, eu agradeço. Coloco sim Cristiano.- se for para ires no dermatologista, dou-te até propina, que mal educada, descortês, ignorante, snob que sou. Cristiano não ouve, espreita-me as pernas presas no manipulo da porta, a mochila prende-se ao fecho, a carteira repuxa-me o braço, castigo, só pode, dos nervos dos montículos, das covas, dos buracos, das bolhas, das dores, das cores, das penas, isso das penas que arrancaram o que nunca esteve. Onde é que eu toquei meu Deus, onde?