Esperava outra coisa. Uma mesinha maior, das que saem da janela, convidam os braços a se espreguiçar em copos de papel e café. Imaginava que ia ter tomadas e ligação à internet. A minha mãe tinha-me dito que podia lavar e pentear o cabelo, e fazer as unhas. Nunca faço as unhas, as unhas estão feitas. Desde cedo. Parei a pensar nisso, nas coisas mais estranhas do corpo. Um bebé, na barriga da mãe tem unhas, e tem olhos. Se é mulher, espera-se dele que pinte os olhos e as unhas e os cabelos. Que não tome muito banho para não enfraquecer fios e secar a pele. A pele quer-se aveludada. Cremes. Caros. Caviar. Comboio, era aqui que eu ia. Na história, e também na realidade. Esperava outra coisa. Os joelhos tocavam o plástico branco, e uma pranchinha perra imitava mármore. Cabia ali um livro. Desses ilustrados que são compridos como cadernos a4 mas rachados ao meio. Encurtados, comprimidos, cheios de design.
Eu não gosto nada de andar a fazer isto, ele gritava. Vocês acham que eu gosto de andar a fazer isto? E depois sorria, um sorriso largo num homem estreito. Vocês acham que eu gosto de andar por aí a dizer a toda a gente: sou seropositivo, tenho sida, acham? Speak portuguese? Sida, Sida!
Caiam moedas europeias na mão em concha. Thank you. O comboio ajeitou os cabelos no tal cabeleireiro que a minha mãe falou. Ai ai, ai ai, ai ai. Ter sida era menos assustador que arrancar para Braga. As moedas não chegariam e de qualquer forma o comboio já ia cheio. Ele desceu. Quem lhe deu moeda pensou no seu lugarzinho no céu. Quem não lhe deu pensou na folha mal fotocopiada em que se explicava a Sida, e nos cafés escuros de Santa Apolónia.
Eu pensei que não estava na Holanda. Claro que não ia ter uma boa mesinha de trabalho.
Speak portuguese?
É isso.
Chegaram com malas sacos e olhos postos no lugar vazio ao meu lado. Não, a sua é a carruagem 22. A 23. A twenty-five. Aqui moço, é a 21. Mas o lugar é este. Todas as carruagens tem cadeiras numeradas da mesma forma. Ah. Ah é verdade. Uma verdade, por dia.
O comboio arrancou. Com-Bó-io. Com-Boi-o.
Portugal tem cor de brócolo.
Não sei se os bois comem brócolos.
Eu tenho fome.
De momento é tudo.