calor

Ficou no escuro. O escuro por dentro era rugoso, o avesso de qualquer coisa. Orgânico. Tinha esse cheiro que bicho tem e que bebe os perfumes em volta mas aparece sempre, resistindo, insistindo em ser bicho.

Ficou no escuro e cada tanto roçava algo, algo rijo, amarelado, mas isso ela não via. Eram bolinhas, variadas, rijas, saltitando no fundo, raspando-a. Quando fazia frio o corpo dela enrijecia. No calor dilatava. O escuro ficava mais escuro ou menos escuro, mas as pedras sempre lá.

Eram pedras?

Havia movimento, e quando havia movimento havia também peso, e vozes. A luz variava mais e o cheiro a bicho era quase imperceptível. Mas depois parava tudo e não havia mais ninguém pesando sobre ela, ela não desaparecia no meio de coisas brancas e lisas, dentro de arames que eram sacudidos antes de tudo parar.

Às vezes tiravam-na para fora, e ela deslizava nas coisas brancas. Era bom. Era o que tinha de ser.

O destino tem qualquer coisa de tranquilizante, ainda que isso a esgotasse, ainda que a aproximasse do fim.

Servia para alguma coisa.

Queria acabar assim, gasta.

Um dia fez calor, as pedras,

eram pedras?,

raspavam-lhe os desenhos. Fez mais calor. O corpo dilatava e fervia. O sangue queria escapar, encontrar as coisas brancas e deslizar, escorrer.

Não havia para onde.

Escorreu até a ponta, estrangulada entre si e uma tampa intransigente.

Segurou o que pode.

Não iria para fora, não se misturaria com aquele avesso de cheiro a bicho. Ficou ali feita nódoa negra, entre a ponta e a tampa.

Cheia de si.

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