os macacos

No ecrã o mundo avança devagar,

ao longe,

uma fina capa sobre a crosta do mundo.

Uma dobra, dourada.

O mundo está fechado,

duas vezes,

trancado.

Dizemos: deita fora, e ele,

duas vezes,

fechado, deita.

Há quem diga que ele é quadrado e aí começa,

o fim.

Gosto de poemas. E de alguns poetas.

Gosto da Julia de Carvalho Hansen. Muito. E não sei explicar porquê. Gosta da Adília Lopes, e sei explicar.

Porquê.

Gosto da Filipa Leal, da Marília Garcia, da Carla Kinzo.

A Carla no insta, uma foto de alguém, diz que no pantanal um macaco chora.

Porquê.

Arde tudo, e o macaco chora porque o mundo acaba.

O dele, o nosso, os poemas.

Porquê.

Nunca sei se sei escrever poemas,

como elas.

Mas choro, como o macaco,

a minha casa também está em chamas,

a beterraba queimou a panela, enquanto olhava o ecrã,

duas vezes fechado,

o mundo estava melhor.

Porquê.

Pela janela, a minha, sai o fumo da beterraba esquecida,

cheira a gasóleo dos aviões,

o dinheiro não para,

vai e vem no céu,

na terra uma coisa morta mata pessoas,

uma coisa morta pequena,

dissolve-se com sabão.

As pessoas choram porque não há sabão que chegue.

Porquê.

E água que chegue.

Os macacos sabem,

o porquê,

ainda importa?

e choram.

Na parede

Não dá para saber. As coisas como estão, não dá para saber. Apareceu primeiro na folha branca. Uma folha branca onde ele estava a desenhar, no lado contrário ao do desenho estava uma parte pequena de um conto da Alice Munro. Munro, lê-se Monroe, como a Marilyn, certo? Não dá para saber. Ele desenhava um cowboy e queria saber se era mais cowboyzesco a calça azul escura, clara ou verde. Apareceu aquilo na folha. Como um ponto final leve, uma coisa quase escura, mas menos escura que uma gota de tinta. O que é isto mãe? Uma mosca, uma aranhita, um piolho. Não dá para saber. Assim ao longe eu vejo mal, já vejo mal. Podia ir ao oculista, mas as máquinas, os médicos, os centros, os hospitais…covid? Não dá para saber.

Mas mata, acabei por dizer, o que for mata.

Ele fechou o punho, bateu na folha, do lado do avesso a senhora empregada do pai da personagem lavava o alguidar. O que havia no alguidar só dá para saber no final, e nós talvez nem queríamos saber, mas ela disse, contou quase tudo, deixou o ponto cego noutro lugar.

O ponto da folha, eu não sei se via, mas saltou, saltou, saltou. Ele batia o punho.

Vai com o dedo e mata, eu disse, vai com o dedo e mata.

Mas ele não foi capaz. Passou-me a folha com um cowboy de calças brancas, cinto azul, camisa cinzenta, lenço vermelho, chapéu castanho, botas pretas e as esporas metade amarelas metade castanhas. De que cor pinto as calças?

O que fosse saltou para a colcha e deixei de ver, já deixei de ver, e passei a mão, a mão arranhou a colcha e não viu ponto final nenhum, nem vírgula, nem mosca, nem aranha. O que era mesmo não ia dar para saber.

Depois ele deixou a folha, a mulher levou o dinheiro e deixou o alguidar, o meu filho pequeno largou o bico do peito e sugou o vazio de olhos fechados. E então eu vi, na parede, do lado da rachadura, um pouco acima do cinto castanho que segura o chão.

Era uma pulga.

Os livros de 2019

  • O homem que via passar comboios- George Simeon
  • Flores- Afonso Cruz
  • A cena interior- Marcel Cohen
  • Portugal- Miguel Torga
  • Uma história de amor e trevas- Amos Oz
  • Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto- Mário de Carvalho
  • Chá e amor- Kawabata
  • O amor dos homens avulsos- Victor Heringer (Releitura)
  • Já então a raposa era o caçador- Herta Muller
  • Terra de neve- Kawabata
  • Ensaio sobre a cegueira- Saramago
  • Se esta rua falasse- J. Baldwin
  • Matadouro 5- Kurt Vonnegut
  • Se numa noite de inverno um viajante- Italo Calvino
  • O jogo das contas de vidro- Herman Hesse
  • Uma abelha na chuva- Carlos de Oliveira
  • Finisterra- Carlos de Oliveira
  • The beauty of the husband- Anne Carson
  • M train- Patti Smith
  • Gente de Dublin- James Joyce
  • Emily L.- Marguerite Duras
  • O senhor Teste- Paul Valery
  • Tribunal de quinta-feira- Michel Laub
  • A coisa mais próxima da vida- James Wood
  • Uma conjura de saltimbancos- Albert Cossery
  • O processo- Kafka
  • Inverno- Ali Smith
  • Monsieur Pain- Bolaño
  • Morte nas nuvens- Agatha Christie
  • Némesis-Agatha Christie
  • Um crime no expresso do oriente- Agatha Christie
  • Um punhado de centeio- Agatha Christie
  • O peso do pássaro morto- Aline Bei
  • Alguns humanos- Gustavo Pacheco
  • Doutor Glas- Hjalmar Söderberg
  • História da eternidade- José Luis Borges
  • O ano da morte de Ricardo Reis- Saramago
  • La hija del caníbal- Rosa Montero
  • A morte e o Meteoro- Joca Reiners Terron
  • O velho e o mar- Hemingway
  • Clube dos jardineiros de fumaça- Carol Bensimon
  • La literatura Nazi en America- Bolaño
  • Admirável mundo novo- Huxley (Releitura)
  • As virgens suicidas- Jeffrey Eugenides

Livros que não consegui terminar, porque não quadrou ou não gostei tanto:

O livro de peixes de William Gould- Richard Flanagan

Oblomov – Iván Goncharov

Parece que não foram tantos, porque este ano li, e reli, e reli, inúmeras vezes o meu.

Gosto que o ano começou com um clássico policial, passou pelo Monsieur Pain e no meio do ano de novo com a Agatha. Que teve dois Saramagos. Que reli o amor dos homens avulsos. Que se comparar com 2018 já percebo uns favoritos.