Marco António III

Ali ficou vendo a luz mudar. Primeiro acariciara os tacos de madeira da entrada da cozinha, depois lentamente como numa valsa desconhecida foi-se deslocando, graciosa, o bar que era de sua avó portuguesa, a livraria magrinha magrinha mas que exibia orgulhosa os clássicos em edições de bolso, a mesa de jantar com suas frutas de plástico, a televisão velha com o seu crochet encardido…sedutora saíra pela janela, escondendo-se num farol de rua, desmaiado e abafado como quem denuncia uma mentira.
Não se pode dizer que pensava sobre a frase do estudante…para pensar fazem falta palavras. Naquele silêncio ele repetia músicas sem parar, como que tomado por um frenesim do passado. As músicas que escutava eram fragmentos da sua infância…o meu chapéu tem três bicos, o jardim da celeste, atirei o pau ao gato, ciranda cirandinha…frases soltas da sua professora primária, da sua avó, do seu avô, frases soltas de ninguém em particular…um padeiro, a peixeira. Fragmentos do passado que como estilhaços de granada feriam algo escondido nele.
Pensou por um momento que pensaria alguém que o encontrasse ali, naquele escuro, naquele silêncio. Imaginou que a pessoa saltaria em sobressalto, que se agitaria e se indignaria com ele por esse comportamento bizarro. As pessoas não gostam de excentricidades. Só para as estrelas lá em Hollywood ou para a Ana Maria Braga. Taxista, no escuro, pensando, não dá. Ninguém chegaria de surpresa acabou por pensar, a diarista vinha só às quintas, e pela forma como ela limpa nem se daria conta se ele estivesse ali, estático de morto ou estático de atormentado.
Porque lhe tinha parecido tão estranho que aquele moço, visivelmente perturbado em sua falta de sono, lhe dissesse que não “pegava” com ele ser taxista?! Acaso “pegar” era coisa que lhe interessasse?! Acaso um jovenzinho intoxicado em café Pilão forte saberia o suficiente das coisas da vida como para se lançar em comentários alheios?
A resposta retornava a mesma…algo de uma verdade tinha sido dito. Uma verdade do afecto, inesperado, gratuito, improvável entre um passageiro e seu condutor.
E essa verdade encontrara-o, por mais cliché que pareça, encontrara-o nu.
Haveria verdade nessa verdade?
Pode-se saber sobre a natureza do outro, assim, num piscar de quilómetros?
Era difícil pensar com um carrossel de músicas antigas latejando os neurônios, aquelas músicas, porque raio se apresentavam agora, ali?
Pensou ver a novela. Malhação? Já passara da hora. Mesmo sem ele, essa tarde conseguiriam visualização recorde. Algo que lhe esvaziasse a cabeça. Que a silenciasse.
Preciso, acendeu a luz, a música e olhou a geladeira.
Não…
Era tema de palavras.
Apagou a música, acendeu outra luz.
Pegou num livro, não lido. Abriu.
(…)para levar uma vida que, por ser destituída de esperança, tornava-se também uma vida sem qualquer espécie de ressentimento.”*
As pombinhas da catrina voaram e a frase ficou ali repetindo-se.

* O primeiro Homem. Albert Camus

Marco António II

Ajeitada a camisa, o cabelo, o pelo que fugia rebelde por entre o botão da camisa, ele saiu, tilintando chave, assobiando como filme  a preto e branco, ligou o carro, calibrou o ar condicionado e saiu.

O primeiro cliente era a clássica mãe desesperada: dois filhos, vinte mochilas, o atraso que seria imperdoável hoje, hoje viria seguramente uma notinha para casa…A viagem começou agitada, a criançada falando alto a mãe segurando o choro com as palavras, as mochilas indo de cá para lá. Ele colocou Mozart. A criançada acalmava sempre com o Mozart. Em menos de cinco minutos o silencio se instalara, a mãe abrira finalmente os olhos, tocou-lhe o ombro: obrigada.
O segundo cliente era bem diferente, farialimastyle, executivo, alto, duro. Reclamou que a interpretação do pianista era brega, recomendou outra e saiu bem na frente de uma conhecida casa de massagens.
O terceiro era com certeza estudante, as olheiras, a barba por fazer que dizia baixinho não não é por moda, a mochila rasgada carregada como a cruz. Pediu para atravessar a cidade, chegava tarde ao exame. Lizst quebrou-o. Olhando pela janela, sendo olhado pelo retrovisor. Quando chegou era um farrapo, sem força para recolher a mochila, o saber, o olhar.
Ele ofereceu a corrida. A supresa deu-lhe uma força qualquer…seria um acredito em si velado?
Ele dirigiu de regresso, odiava campus universitários.
O moço chamou-o pelo retrovisor esbracejando.
Marcha a ré.
Sabe você não devia ser taxista.
Ficou embasbacado.
Nunca tinha pensado que havia opção.
Era meio dia mas regressou a casa.
Desajeitou a camisa, ignorou a madeixa rebelde, o pelo preso no botão e sentou-se na poltrona coçada em silêncio.

Marco António

Quem olhasse para ele, todas as manhãs frente ao espelho gasto, compondo sua camisa, seu colarinho, seus punhos, quem o visse sempre ali às 6.49 de cada dia, chovendo ou soleando, com frio ou calor, pensaria que sim, que o homem é mesmo uma criatura de hábitos.

Ele diria que não, que é uma questão de disciplina. Ele não precisa de se ajeitar nesse horário, daquele jeito, dia após dia, é logística pura e dura.
Ele em geral detestava qualquer redução dessa ordem: o homem é um animal de hábitos,  o passarinho que acorda cedo apanha a minhoca e por aí fora…
O estranho é que olhando para ele, qualquer um sentiria que estava diante um estereotipo.
Eu poderia dizer-vos: Sabe aquela clássico taxista, ligeiramente pelado mas com patilhas para compensar? Sabe aquele típico taxista de brinco de diamante na orelha, não aquele de verdade, mas o que se vendia lá nos oitenta às mocinhas…um cubo de plástico barato bem cheio de brilho para ser mais epicentro do olhar que o deus me livre, sabe qual? E todos vocês já o imaginariam tal e qual o podem ver. Camisa de riscas em cores fortes, aberta mostrando o peito farfalhudo, e ocasionalmente o palito que dá o toque ibero-italiano que termina de demonstrar-nos que este homem se chamará Silva, Peres, Lopes com s ou com z. Pode ser que seja italiano…hum…acho que não. Seu estilo é mais de beira mar, um taxista de Benidorm, Albufeira, algo assim entre o autentico e o para turista ver.
Enfim, todas as manhãs 6.49 concertava sua camisa, 6.51 tomava o sei café de filtro, mordia a sua torrada de pão italiano besuntada de queijo creme comprado por atacado e saía, tilintava o seu chaveiro na rua ainda deserta, assobiava como se estivesse num filme a preto e branco.
Chave na fechadura do carro e vamos procurar o primeiro cliente. Assim ia a sua vida. Toda típica, toda rutinária, toda de estereotipozinho.
Excepto numa questão.
Ele gostava mesmo era de música clássica. E opera, ele disfrutava muito da sua opera.
Mozart, Beethoven, Liszt, Händel, Bach até coisas mais recentes como Rufus Wainwright.
Cada passageiro abria a porta, olhava para aquela personagem que educadamente descia o volume para soltar um informal cumprimento e sorria pensando que tinha diante si o esperado, o confiável, embora provocando uma certa antipatia…
Quando ele subia o volume o silêncio instaurava-se, caía pesado como cortina de veludo.
Que dizer quando o óbvio nos surpreende?
Ele pensava que era a música operando sua magia nos ignorantes, sentia-se um profeta do passado, um che guevara guerilhando contra o funk e satisfeito oferecia ao retrovisor um sorriso como uma marcha triunfal.